domingo, outubro 16, 2005

A luz no escuro



Já comparei a ciência a uma luz muito fraca numa noite muito escura, num lugar desconhecido. Ela ilumina só um bocadinho, e mesmo assim mal. E nós temos que ir juntando os bocadinhos que uma pessoa vê aqui com os bocadinhos que outro vê ali, e ir reconstituindo o caminho. Por isso é tão importante ser de uma integridade absoluta quando reportamos o que vemos do nosso bocadinho: é que outros vão usar essa informação e construir a partir daí. Um erro inicial pode multiplicar-se e levar a cair no abismo.

Há um célebre texto de Richard Feynman que descreve exactamente aquilo que eu quero dizer:
It's a kind of scientific integrity, a principle of scientific thought that corresponds to a kind of utter honesty--a kind of leaning over backwards. For example, if you're doing an experiment, you should report everything that you think might make it invalid--not only what you think is right about it: other causes that could possibly explain your results; and things you thought of that you've eliminated by some other experiment, and how they worked--to make sure the other fellow can tell they have been eliminated.

Details that could throw doubt on your interpretation must be given, if you know them. You must do the best you can--if you know anything at all wrong, or possibly wrong--to explain it. If you make a theory, for example, and advertise it, or put it out, then you must also put down all the facts that disagree with it, as well as those that agree with it. There is also a more subtle problem. When you have put a lot of ideas together to make an elaborate theory, you want to make sure, when explaining what it fits, that those things it fits are not just the things that gave you the idea for the theory; but that the finished theory makes something else come out right, in addition.

In summary, the idea is to give all of the information to help others to judge the value of your contribution; not just the information that leads to judgement in one particular direction or another.

Caltech commencement address, 1974.
É isto que as pessoas esperam dos "cientistas" mas que, infelizmente, muitas vezes não recebem. Às vezes recebem "hipóteses", normalmente muito bem envolvidas em roupagens teóricas. Tão envolvidas em linguagem técnica, de facto, que se tornam incompreensíveis. E vêm, então, acompanhadas de cálculos, ou experiências, gráficos e tabelas que, se não se percebem, pelo menos inspiram confiança. Perca-se um bocadinho a analisar aquilo tudo, no entanto, e percebe-se o truque: não há nada ali de substancial. O autor viu uma coincidência engraçada, elaborou a sua hipótese, fez uns cálculos superficiais que a pareceram confirmar e não mexeu mais. Aplicam-se os critérios de Feynmam e vemos a "hipótese" pelo que ela é: uma "just-so story" (ler as originais aqui), uma idéia gira que, sem suporte empírico, não passa disso.

2 comentários:

LN disse...

azInevitável a tentação de comentar -a integridade pode ser uma espécie de sítio, de "encruzilhada", onde a ciência, a ética e uma visão do mundo se encontram e combinam entre si como melhor agir :)
A qualidade de ser e fazer íntegro, tanto reporta à integridade referencial como metodológica, procedimental como processual. E se somos anões aos ombros de gigantes, convêm que esses não tenham pés de barro e que nós não façamos o abismo por nossas próprias mãos.

Por polidez, aviso que vou levar a «luz no escuro» para o meu canto! Amanhã, que até lá ainda vou ler as recomendações.

José Azevedo disse...

O problema, LN, é que algures no caminho do progresso, dos projectos e do currículo, muitos esqueceram as questões da integridade. A integridade não fica bem no curriculo. Não me lembro de nenhum artigo científico em que os autores falem nas coisas que correram mal, das limitações dos seus dados, ou em que se mostrem preocupados com a falsificação da sua hipótese. Não é bem visto, aparentemente. Mostra insegurança, pensarão.
Tanto assim que se assiste ao espectáculo confrangedor de salas cheias de doutores a confundirem especulação infundada com sapiência. O que distingue um cientista é a sua humildade perante o desconhecido, reflectida na substanciação cuidada das hipótese dadas a público. Qualquer um pode ler umas coisas e fazer elucubrações. O limite é apenas o da imaginação. E elucubrações, por mais eruditas que sejam, não são ciência.