quarta-feira, outubro 19, 2005

Era fatal...


... tinha que falar da gripe das aves. Desculpem. Continuem lá o zapping.

A sociedade ocidental é controlada pelo medo. Medo dos terroristas. Medo dos pretos, dos ciganos, dos emigrantes. E medo das doenças.

Periodicamente surge uma doença da moda, que vai matar toda a gente. Ganham os políticos, com o povão a olhar para outro lado e eles a poderem mostrar que controlam (est)a situação. Ganham os jornalistas, e ganham muito mais os donos das multinacionais que controlam a imprensa. Ganham os laboratórios farmacêuticos. E no final não morre ninguém, e ficamos todos contentes.

Foi assim com a sida*, com a doença das vacas loucas, com a SARS, e agora com a gripe das aves.

Reparei como a coisa começou, há uns meses, com pequenas notícias dispersas sobre as pandemias de gripe, e entrou depois na actual espiral. Valia a pena tentar saber se a guerra judicial entre a Roche e a Gilead Sciences Inc, o laboratório que inventou o Tamiflu, tem alguma coisa a ver com isto. Os inventores fundamentavam a queixa na alegação de que os compradores não faziam uma divulgação suficiente do produto...

Agora, claro, com 60 pessoas mortas desde 2003, o assunto adquire importância mundial. E tinha mesmo que ser, não é? Sessenta pessoas em 2 anos isso dá, para aí, 3 mortos por mês. Assustador. Sobretudo se comparado com as 3 pessoas que morrem por dia nas estradas de Portugal. E estamos a falar de um conjunto de países no Sudoeste Asiático com uma população de mais de 400.000.000 de pessoas.

Mas, dizem-me, esta doença é perigosíssima em pessoas: das 117 infectadas morreram 60. Logo, se és infectado tens 50% de hipóteses de sobreviver. (OMS: "In the present outbreak, more than half of those infected with the virus have died."; "WHO reports only laboratory-confirmed cases.") Hummm...

Em Portugal, a quantas pessoas é que é feita a análise molecular da estirpe do vírus que a infectou? E agora imagine-se no Viet Nam? Quantos indivíduos estavam na sua barraquinha, com uma hortinha, um porco, umas galinhas e patos à solta no quintal, sentiram-se mal, uma gripezita, três dias de cama e pronto? Ninguém sabe, mas eu imagino que devem ter sido muitos. Parece-me lógico que só os casos mais graves terão ido parar ao hospital, e destes só os mais estranhos terão sido testados. E, entre esses, não é de estranhar que a mortalidade seja elevada.

Mas, dizem-me, existe a possibilidade de o vírus se transmitir entre humanos. Pois existe. Assim como existe a possibilidade de eu ganhar o Euromilhões. E hoje o José Rodrigues dos Santos já dizia "QUANDO a pandemia começar..." Foi do entusiasmo, de certeza, eu até tenho boa impressão do rapaz!

Mas não se pense que não me assustei. Fiquei até muito aflito, mas foi quando começaram a falar de aves migratórias. Cheguei a pensar que iam sugerir o abate em larga escala de patos selvagens, gansos, cegonhas, flamingos, essa passarada toda que anda para aí criminosamente a espalhar doenças. Mas não. Ninguém falou nisso. Pelo menos ainda não. Falam é em proibir a caça- sempre há males que vêm por bem.

Para continuar a rir com este assunto (para não chorar) ler o texto de João Pereira Coutinho. Para os masoquistas, que querem mesmo é chorar, recomendo o blogue Pharma Watch.


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* Desta não morreu ninguém, mas não há motivos para contentamento...

4 comentários:

Nélio disse...

Professor essa de eliminar as aves selvagens era de génio!!! venha lá a gripe, limpe uns quantos "humanos" que já somos demasiados, somos tantos que já ouvi alguém dizer que a culpa da ruptura do manancial de bacalhau nas águas da Terra Nova se deve às FOCAS, e que por isso temos de controlar a sua população!!! E já agora (acho que ninguém ainda se lembrou), segundo li no livro "Sperm Whales: Social Evolution in the Ocean" do
Hal Whitehead não é que os cachalotes andam a comer demasiado?!?! segundo consta comem anualmente 3 vezes mais "recursos" do que aqueles que Homem retira do mar, MEU DEUS temos de controlar a população mundial de cachalotes!!!!

Moral da "coisa"? não sei bem, talvez eliminar todos os bixos que nos possam vir a causar "danos".

Anónimo disse...

Boa entrada!!! Concordo plenamente. Hoje um amigo meu perguntou-me se naoe stava preocupado com a gripe das aves. Eu comentei: 150000 pessoas morrem por ano de gripe comum nos Estados Unidos. Neste momento acho q devo preocupar-me mais com a gripe normal!. Se calhar nao tenho razão. Mas q a comunicação social está claramente a aproveitar-se da situação está. Acho é q nós biólogos deviamos começar a explorar esta sede de senscionalismo para publicitarmos a nossa "arte" e ganharmos mais simpatia por parte do público. Mas de forma inteligente, claro, ou o tiro sai pela culatra!!! :)

José Azevedo disse...

Nélio: a história de que a extinção comercial do bacalhau da Terra Nova se deve às focas e não a décadas de pilhagem praticamente desregrada é oficial, apesar de ridícula. É o reflexo de duas coisas: a cegueira pelo dinheiro e a presunção de que se pode controlar a natureza. Sózinhas já são perigosas, mas tendem a andar juntas, com os resultados que se conhecem...

Anónimo: não me parece que seja chafurdando neste e noutros lamaçais que os biólogos ganhem simpatia do público. Aliás, simpatia deste público não a quero nem dada!

Nélio disse...

Professor eu sei que é oficial, talvez não me tenha explicado bem... Parece-me é presunção da nossa parte vir agora culpar as focas. Elas e o bacalhau já cá andavam muito antes dos bacalhoeiros ;)