terça-feira, julho 19, 2005

Irracionalidades



Estamos ainda muito longe de eliminar as irracionalidades no nosso sistema de ensino superior. Tudo está disfuncional e desorganizado, começando no esquema de financiamento, passando pelo numerus clausus e pelo estatuto da carreira docente e acabando na (des)estruturação pedagógica dos cursos. Muitos docentes e gestores universitários estão alheados das causas profundas da actual crise, e muitos dos que têm alguma ideia dos problemas estão enredados nas malhas do imobilismo próprio e alheio.

Não admira pois encontrar comentários como os de João Vasconcelos Costa, no seu último artigo, de que tenho o gosto de transcrever:

A Universidade dos Açores abriu uma nova licenciatura em Biotecnologia. Disto sei eu alguma coisa. É um exemplo típico de uma actividade interdisciplinar, a nível de pós-graduação, integrando em equipa biólogos, químicos, engenheiros, informáticos. Quem pensa que pode haver hoje uma licenciatura em biotecnologia, ainda por cima nos Açores, anda nas nuvens acerca da biotecnologia.


Outra nova licenciatura da UAç é em Ecoturismo, para 20 alunos. Num ano, saturam o mercado de emprego. Ao mesmo tempo, abrem também uma nova licenciatura em Património Cultural. Só falta também, nesta licenciatura, um ramo de restauro. Porque não ainda mais especializada, em ecoturismo e património cultural da minha querida freguesia da Ribeira Seca, a tal em que, em tempos idos, se deixava a chave na porta para os vizinhos poderem entrar?

Aparecerem ofertas deste género (e alunos que as frequentam), como JVC bem sabe, é sintoma da irracionalidade instalada no sistema. Eu até estive envolvido na génese da licenciatura em Ecoturismo, embora numa perspectiva de damage control, e não me sinto particularmente satisfeito com a minha contribuição. O que me aflige é encontrar a ponta da meada. Por onde começa a reforma? Pelo Ministério? Pelos reitores? Pelos departamentos? Individualmente? Ou precisamos de um Alexandre?

3 comentários:

JVC disse...

Muito obrigado pela referência ao meu artigo. Nada me move contra a UAç, muito pelo contrário, é a da minha terra. Mas, por isto, custa-me muito ver o seu desnorte.

Anónimo disse...

É engraçado q tive a mma reacção qd soube da existência de um curso de biologia marinha na UAç. Ainda mais qd qd conheci o plano do curso, uma vez q era essencialmente igual ao anterior plano de Biologia, ramo marinha. O curioso no artigo do JVC é a correcção q mais tarde publicou. É q aposto q essa correcção se pode aplicar a qq um dos cursos q referiu. Qq novo curso, ou remodelação, pode ser encarado como uma forma de "... corresponder (r)melhor aos objectivos e conteúdos do curso e corresponde(r) à necessidade de ser apelativa, face à oferta neste domínio...". O caso do ecoturismo, qts colegas meus de Biologia nao acabaram a trabalhar para a indústria do ecoturismo? Se calhar faz sentido existir esse curso nos Açores. E o curso de Biotecnologia faz, provavelmente, tanto sentido como o curso de biologia marinha.

Penso q avaliar os cursos pelo nome é como julgar um livro pela capa (como dizem os ingleses). Até pq uma mudança académica nao se faz num ano. Por isso, é natural q durante alguma fase seja necessário existirem cursos semelhantes para perceber qual a procura dos alunos. O problema é q na maioria das vezes, os programas de curso nao chegam aos alunos do secundário, ou se chegam, dizem-lhes tanto como o nome dimetilsulfóxido!

Nao estou a dizer q nao existem cursos superfulos nas universidades portuguesas. Estou apenas a querer dizer q actualmente, as mmas vivem entre um mundo idealista e uma filosofia pragmatista. Idelista pq continuam a ser olhadas como um centro de formação e liberdade intelectual, onde o conheicmento prolifera e cresce. Pragmatista, pq extremamente dependentes de fundos q mtas vezes nao existem. Como tal, têm q encontrar estratégias de se tornarem apelativas e de atrairem os alunos (senão porquê existir uma cadeira de mamiferos marinhos no curso de biologia marinha nos Açores?!), q mtas vezes pode passar por dar nomes apelativos aos seus cursos. Não é a forma mais correcta, eu sei. Mas a verdadeira raiz do problema, penso estar bastante mais funda.

P.S.: lembrei-me agora dos titulos de alguns cursos no Reino Unido - Biologia; zoologia; Botanica; Ecologia; Biologia Marinha; Biotecnologia!!!! São apenas alguns de q me lembrei, pq há mais. Mas eles lá devem saber!

José Azevedo disse...

O problema de cursos de "banda estreita", como os de Ecoturismo ou de Biologia Marinha, é conferirem aos seus portadores uma especialização precoce, limitando potencialmente as saídas profissionais. É por isso que a Ordem dos Biólogos (e a ECBA, neste documento) sempre tem defendido a existência de uma formação inicial generalista, de "banda larga", conferente do título de Biólogo, a que se seguiriam especializações escolhidas em função das inclinações pessoais ou das motivações profissionais.
O que tem acontecido em Portugal, na minha opinião, é que são distorções ligadas ao sistema de financiamento das universidades que têm levado à proliferação exagerada de denominações.
Por outro lado, a sua referência aos cursos no reino Unido despertou-me a curiosidade, e fui espreitar o site da Univ. Portsmouth, com a qual temos tido algum intercâmbio. E encontrei lá as seguintes designações de cursos de graduação em áreas ligadas à Biologia:

-Biochemistry
-Biology
-Biomedical Science
-Environmental Biology
-Environmental Science
-Forensic Biology
-Genome Science
-Marine Biology
-Marine Biology With Polluted Ecosystems
-Marine Environmental Science
-Microbiology
-Palaeobiology And Evolution

Não há aqui, de facto, muita contenção... A minha surpresa foi maior quando cheguei aos cursos de pós-graduação:

- Biomedical Science
- Ecotourism
- Fisheries Economics
- Scientific Research Methods

Isto é exactamente o contrário do que eu estaria à espera... Fui espreitar à Univ. de Plymouth, com a qual também contactamos e encontrei o mesmo padrão. Estes são os cursos de graduação:

- Animal Science
- Animal Science (Behaviour and Welfare)
- Animal Science (Equine)
- Aquaculture
- Biological Sciences
- Environmental Biology
- Environmental Science
- Environmental Science (Biodiversity and Conservation)
- Environmental Science (Environment and Health)
- Environmental Science (Environmental Change)
- Environmental Science (Environmental Sustainability)
- Environmental Science (Marine Conservation)
- Extended Science
- Marine Biology
- Marine Biology and Coastal Ecology
- Marine Biology and Oceanography
- Ocean Science
- Plant Discovery and Exploitation
- Wildlife Conservation

E estes os de pós-graduação:

- Animal Science
- Biological Sciences
- Ecology and Conservation
- Environmental Sciences and Environmental Studies
- Marine Biology

Como resolver esta contradição?

Não conheço a realidade do país, mas este padrão explica-se se a graduação corresponder de facto à empregabilidade, conforme estabelecido em Bolonha. Se o aluno tem emprego ao fim dos 3 anos, faz sentido dar-lhe uma grande escolha de áreas de formação. Os estudos de pós-graduação destinar-se-ão a um público mais reduzido, talvez sobretudo dirigido para a investigação.

Um aspecto final: a diversidade que vejo nos 2 exemplos acima resulta de um planeamento fino da integração de um conjunto de módulos básicos. Cria-se assim um aproveitamento de tempo e de recursos. Mais: a flexibilidade é a palavra de ordem! Veja-se:

This specific pathway allows students to pursue a specialised programme of study within the environmental biology subject area. However, the pathway programme is flexible, and transfer between the pathways is possible at the start of the second year. Thus a student initially registered on this pathway may change to another specialised pathway within the programme or to the broader based biology degree should their interests change.

Isto prende-se com a sua observação sobre "julgar um livro pela capa": o nome do curso ou da disciplina não diz nada. Neste caso, nem o número de cursos diz nada. O essencial, parece-me a mim, é a questão da QUALIDADE. E esta não é uma coisa vaga. Define-se e implementa-se. Os seus (e meus) adorados ingleses têm uma coisa chamada Quality Assurance Agency, que já desenvolveu um Code of practice for the assurance of academic quality. Palavras para quê?